Prazo de validade
- Olga Colvara
- 15 de ago. de 2017
- 4 min de leitura

É interessante como algumas pessoas parecem fazer parte da sua família desde sempre e para sempre, como seres humanos criados por Deus sem data de validade para que toda a família tenha a alegria de conhece-los e todos tenham histórias para contar.
Na minha vida esse ser chama-se Concitinha. De onde ela veio ou desde quando eu nunca soube ao certo, o que eu sei é que quando eu tinha seis anos e acabara de mudar de Brasília para São Luís ela já estava aqui, e já era bem grande.
O ano era 1994, estava naquela fase mágica que toda menina passa em que o amor pelo seu pai é maior que qualquer outra coisa nesse mundo e imaginar que ele viajaria por tanto tempo pra tão longe era uma coisa insuportável demais para ser verdade. Tomei minha decisão, fiz meu drama, mamãe de coração partido arrumou minha mochila, peguei meu kit de curativo, pois estava com um machucado recente no pé e parti para essa aventura com meu grande amor.
Mais de três mil quilômetros de estrada, algumas paradas, algumas trocas de curativos, um cd de Fagner, ou era fita, não me lembro. Alguns trechos com a estrada precária, alguns trechos noturnos, outros com chuva, mas não havia medo, eu estava com papai então o que poderia sair errado? Ou quem poderia nos machucar? Nada, nem ninguém. Hoje em dia se viajo 300km de estrada e pego um pequeno trecho depois que anoiteceu falto ter uma parada cardíaca só de tensão. Um fato curioso quando crianças é a ousadia e coragem que temos, mas que infelizmente vamos perdendo ao longo dos anos.
Chegamos. Minha vó morava numa casa grande bem diferente do apartamento de uns 70m2 que morávamos em Brasília, a casa cheia de tios e tias, papai o dia inteiro trabalhando, todos adultos cheios de responsabilidades, meus irmãos ficaram com mamãe, lá não tinha um cachorro, era só eu e Deus até que as aulas começassem. E assim conheci Concitinha. Concitinha é uma negona alta e forte, na época era contratada apenas para lavar e passar roupas e fazia um serviço excelente. Enquanto ela trabalhava no quintal eu aproveitava para ficar banhando dentro de um balde, era uma forma de fazermos companhia uma para a outra e refrescar um pouco.
Os anos passaram, certo tempo depois minha mãe veio pra cidade com meus irmãos e vovó se mudou para um apartamento. Ficamos com a Concitinha, mamãe com a paciência mineira e a falta de dinheiro para pagar alguém apenas para lavar e passar roupas foi aos poucos ensinando Concitinha melhorar na cozinha e quando menos esperávamos ela superou todas as expectativas e seus almoços tornaram-se conhecidos entre nossos amigos.
E por anos lá estava ela, Concitinha nos viu subindo as ruas do renascença a pé para aula de alfabetização no antigo Girassol, nos acompanhou algumas vezes até a escola de natação parando no caminho para colher umas sementinhas vermelhas que gostávamos de usar para brincar de comidinha, conheceu os cachorrinhos que tivemos mas não conseguimos cuidar, conheceu boa parte dos nossos primeiros amigos que fizemos na ilha e lembra de cada um até hoje, escutou meu irmão fazendo barulho na casa quando aprendia tocar guitarra, e a mudança radical de brincadeiras para brigas que tivemos eu e minha irmã quando entrei na adolescência e ela ainda era criança, viu quando cada um morou fora por um tempo e dos três só sofreu quando minha irmã que viajou.
Fez feijão, arroz de camarão, casquinha, peixe frito, solou uns bolos, se especializou no de cenoura e fidelizou nossos amigos com a farofa. Sofreu quando meus pais divorciaram e como quem de alguma forma culpasse minha mãe falava sem medo de magoar toda vez que mamãe voltava do supermercado “Bom era quando o seu Venâncio estava aqui, ia no supermercado sem lista e voltava sem faltar nadinha, agora sempre tem que ter lista e ainda falta coisa.” Apesar do apelido não era uma pessoa exatamente doce, se uma amiga aparecesse gordinha lá em casa ela não perdoava no comentário, também não gosta de ser chamada atenção e nem quando perguntamos onde estão as coisas, em dia que está mal humorada sai de perto.
E aconteceu que eu casei, meus pais voltaram para Brasília, pouco tempo depois minha irmã caçula, a preferida dela, também foi para lá e Concitinha veio trabalhar para mim. Ela chega aqui umas 10h30, algumas vezes ela simplesmente não aparece, se não avisar o que queremos no almoço quando chegarmos em casa não terá almoço nenhum e por ai vai. E assim já está aqui em casa por mais de três anos, fez grande amizade com Cookie, minha cachorrinha e vira e mexe se eu chegar de surpresa pego as duas “conversando”.
Acontece que alguns dias atrás, enquanto eu escrevia, percebi que Concitinha apoiava a mão na coxa enquanto passava pano na sala como quem precisasse de um pouco mais de força para tal agachamento e por um momento fiquei pensativa: - O tempo passou... A mulher mais forte que eu conheço desde criança estava ficando cansada... O tempo não para... Nem mesmo para esses seres especiais. Pedi que meu marido ficasse mais atento para ajudá-la na hora de mover um móvel na casa ou carregar coisas pesadas de um lugar para o outro. Observei com atenção sua fisionomia como quem procurasse os sinais de tal envelhecimento, não encontrei nada, acho que meus olhos registraram a única imagem de Concitinha vista de dentro do balde em 1994 e assim o tempo silenciosamente passou sem que eu reparasse que não era só eu que estava envelhecendo.
O tempo passa para os nossos pais e isso sempre vai nos pegar de surpresa e o tempo passa para nossas Concitinhas também. Resta acostumar com suas manias malucas, seu mau humor vez ou outra, suas reclamações, suas faltas, sua sensibilidade, em troca de prolongar um tiquinho mais o tempo do cuidado, das conversas com Cookie, da sinceridade, da farofa, das lembranças e do bolo de cenoura no fim da tarde.
A velocidade do tempo foi uma arma poderosa criada por Deus na intenção de deixar claro para todos os seres viventes que o amor não pode esperar e para isso o perdão e a tolerância precisam amanhecer no café da manhã a fim de que nenhum dia de amor seja desperdiçado e passe rápido demais.
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