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Lentes de contato

  • Foto do escritor: Olga Colvara
    Olga Colvara
  • 27 de jun. de 2017
  • 5 min de leitura

Segunda-feira, 12:15, enquanto almoçávamos eu e mais quatro colegas do trabalho veio a pergunta:


- Olga, por que tu não usas lentes de contato? Conheço um site que vende mais barato.

- Bem, eu já pensei sobre isso algumas vezes, mas é que eu tenho medo de por causa de uma vaidade eu acabar perdendo meu olho todo.


Parece um pouco exagerada essa resposta, mas era exatamente assim que me sentia. Uso óculos desde os seis anos de idade, a princípio não me incomodava tanto pois só utilizava dentro da sala de aula para conseguir enxergar as anotações no quadro. Quando completei dezoito anos e tirei minha carteira de motorista senti a necessidade de estar sempre de óculos, pois apesar de poucos graus de miopia misturados com astigmatismo fica difícil ler as placas e enxergar os buracos, ficando pior durante a noite entre luzes e faróis e transformando-se em “todo mundo em pânico” se resolver chover.

Com isso atravessei a faculdade e segui como dependente química dos meus óculos, era tirá-los para enfrentar a cegueira total, não identifico rostos, não falo com conhecidos, aceno para desconhecidos, não acho o banheiro e divulgo minha imagem pessoal de zangada e arrogante. Lentes de contato já haviam feito parte dos meus sonhos secretos, porém depois de ouvir de uma tia oftalmologista o número de pacientes que ela recebe com problemas na visão e chegando a perder o olho inteiro por causa da má manipulação eu fiquei um tanto apreensiva.

Vaidade na verdade nunca foi meu forte, cresci muito apegada ao meu irmão mais velho e sempre preferi brincar de carrinhos ou missões ninjas na piscina a cuidar de bonecas bebês. Mas a idade vai passando e aos poucos a falta de vaidade faz uma grande diferença entre mulheres bonitas e mulheres cansadas, hoje tenho olheiras, algumas rugas precoces nascidas da minha cara zangada desde criança e daquelas franzidas na testa para tentar enxergar sem os óculos, meu cabelo depois de repetitivas luzes já não é digno de propaganda da Pantene, enfim, feia eu não sou, mas andar por aí livre de toda vaidade como havia feito maior parte do tempo já estava ficando insustentável.

Havia mais um ponto negativo, por algum motivo coloquei na minha cabeça que estatisticamente o risco de dar errado qualquer procedimento estético é muito maior do que a beleza que pode proporcionar e que se Deus se zangasse com minha ingratidão de tentar transformar quem eu sou podia me castigar e eu ficaria pior do que eu era antes. Isso não é bíblico, nem meus dados estatísticos verdadeiros, foram sofismas criados dentro do meu ser difíceis de ignorar.

Já quis muito fazer uma pequena lipoaspiração na região abdominal, quem não quer? Também seria feliz com apliques de megahair para dar mais volumes aos meus cabelos. Levantar um pouco os peitos, por que não? E por fim ir a um casamento sem carregar na bolsinha de festa minúscula meus óculos para o momento da cerimônia seria um sonho. De todos esses, claro, que lentes de contato são os mais simples e baratos, portanto como um ato de rebeldia ou liberdade entrei num site e encomendei minhas lentes.

Antes das lentes eu sempre frequentei festas especiais sem óculos (deixava-o escondido na bolsa para caso acontecesse algum momento que eu fizesse questão de enxergar), e foi numa delas que descobri o mistério do Superman. Desde que havia entrado nesta igreja ainda não tinha sido convidada para nenhum evento especial, portanto, as pessoas se acostumaram comigo sempre de óculos, sem maquiagem e cabelos secos ao vento, foi quando fui chamada para o casamento da filha do pastor. Decidi caprichar, fui ao salão e fiz maquiagem e penteado com profissionais, coloquei um vestido de festa que apesar de um pouco surrado ainda é o meu favorito e fui sozinha pois meu marido teria que tocar na igreja nesse dia e só chegaria mais tarde. O lugar estava lindo e tinha vista para o mar, cheguei e lentamente andei sem enxergar os rostos na expectativa de que um bom samaritano falasse comigo e me chamasse para sentar, doce ilusão.

Passei batida por todos e nenhum sequer me deu um “oi”, enxerguei uma cadeira numa das mesas vazias e resolvi sentar por conta própria. Ainda fiquei uns quinze minutos sentada, morrendo de vergonha de puxar assunto quando de repente a menina sentada ao meu lado olha para mim:


- Olga?!

- Oi! Tudo bom?

- Caraca! Não te reconheci...tu estás muito diferente!

- Pois é...acho que ninguém me reconheceu na verdade.

- Peraí, teu olho é verde?

- Acho que é mel, no sol que fica parecendo mais claro um pouco.


Então era isso? Por tantos anos zombando da cara do Superman para só hoje descobrir que vivo o mesmo dilema do meu agora amigo Clark Kent? Nenhum adolescente ou adulto gosta muito do Superman, isso porque na nossa racionalidade é meio ridículo todo mundo na cidade conhecê-lo por anos, mas basta tirar os óculos e colocar gel no cabelo que até Lois Lane não reconhece o amado. Mesmo com lentes de óculos transparentes era possível alguém não ter reparado a cor dos meus olhos?

“Olga Kent, sua missão é salvar as meninas de óculos do mundo” pensei, e se não estivesse vestindo um vestido muito querido talvez arriscaria rasgar a roupa e sair voando com minha capa vermelha muito bem escondida na costura do sutiã.

As lentes chegaram. Comprei uma caixa com trinta lentes descartáveis, dessas que você usa apenas um dia e antes de dormir joga fora, minha rebeldia ainda não era o suficiente para abandonar os óculos de vez, muito menos para usar as lentes por dias seguidos sem ter pesadelos com bactérias. Portanto, para economizar, decidi usá-las apenas nas sextas-feiras e sábados.

Para o futevôlei ajudou demais e finalmente consegui ter precisão onde estava a primeira bola quando o saque vinha na minha direção. Mas a mudança mesmo aconteceu dentro de mim. Sexta de manhã, enquanto me arrumava para o trabalho coloquei as lentes e me olhei no espelho, “Não posso usar lentes e sair de sapatilha”, coloquei o salto, “Não posso usar lentes e sair com essa calça jeans de três anos atrás e essa blusa social repetida”, coloquei um vestido, “Não posso usar lentes e sair com olheiras”, passei corretivo, base, blush, rímel, lápis e batom. Pronto. Estava digna das minhas lentes.

Ao chegar no trabalho o comentário foi geral:


- OLGA! VOCÊ TÁ MUITO DIFERENTE! Que vestido! Olha que pernas lindas você tem! Você tá maquiada?!

- São as lentes. Respondi confiante.


Longe dos quinze anos, beirando os vinte e nove, levei mais de vinte anos para descobrir um novo ser por detrás dos meus óculos. Durante a semana vida que segue, mas desde então toda sexta-feira Olga Kent está disfarçada para uma eventual emergência nacional.

 
 
 

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Olga Colvara

Administradora, escritora, esposa e mãe.

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